Posted por em 1 maio 2022

Desenrolar do processo de perda da consciência de si mesmo

A perda da consciência de si mesmo pôde ser percebida desde muitos anos. Talvez desde sempre, mas não temos condições nem registros que nos possibilitem afirmar com convicção.

Os testemunhos que temos – de conhecidos, aparentados, observadores e profissionais de saúde ­–, são de alguns poucos anos, podemos dizer de algumas décadas. Por isso não teríamos como afirmar quanto a nossos ancestrais de séculos ou milênios.

Diante disso, não poderíamos também afirmar se a demência é uma “doença” que surgiu com as mudanças de costumes, alimentação, convívio social e familiar, ou de outras origens.

O que podemos observar no dia a dia, nas conversas habituais sobre o tema, são observações daqueles que experienciam o convívio com pessoas que demonstram dificuldades no realizar tarefas, comentar ocorrências rotineiras e expressar-se com eloquência sobre assuntos que já foram de seu cotidiano. Dificuldades em proceder a atos que lhe foram muito simples durante anos – vestir-se, comer, manter um diálogo sem dificuldade de comunicação, por vezes de entender o que tentamos dizer-lhes.

A tentativa em trazer esse assunto para uma reflexão aconteceu por observar o comportamento de pessoas a respeito do que percebem em seus parentes mais próximos, amigos, até mesmo por encontros sociais. A forma de falarem a respeito dos que têm as limitações a que me refiro. Dizem algo assim:

– coitado, que pena, está tendo cada vez mais dificuldades para se expressar, para andar, para compreender o que lhe acontece.

Algo que se assemelha a estes comentários.

Recentemente tive vontade de trazer um outro olhar para a questão.

Como se sentirá, sente ou sentiu, a pessoa que está passando por uma fase assim?

Bom refletirmos para o fato de que ela, este dependente social, não obstante estar hoje em uma situação mentalmente debilitante, seja de forma leve ou circunstancial, seja já demonstrando intensa dificuldade na comunicação e no entendimento do que lhe ocorre.

Tomemos por ponto de referência uma pessoa que ainda mantém um certo equilíbrio emocional, consegue expressar-se de maneira a saber ser coerente e demonstrar capacidade de oferecer entendimento e, também compreender o conteúdo do diálogo a ocorrer à sua volta.

No entanto, ocasionalmente demonstra falha na memória quando pretende se expressar. Procura dentro de si palavras e conceitos que estão bem “guardados” e não consegue resgatar esse conhecimento – uma palavra, um conceito, nome de um lugar ou de uma pessoa. Essas ocorrências ainda seriam ocasionais e, por isso, essa pessoa tem a percepção do que lhe ocorre. Sabe identificar esse lapso e, por isso, chega a sofrer. Podem ser pessoas que demonstraram ao longo de suas vidas expressiva condição intelectual – conhecimento, memória, interpretação de situações, facilidades de expressão, capacidade de se posicionar com facilidade e contextualização.

Em determinado momento buscam em si uma informação, um fato, uma história (ou parte dela), um nome de alguém de seu círculo familiar. Podem até reconhecer como parente ou um(a) grande amigo(a), mas não se recordam do nome, por vezes nem do contexto dessa ligação, mas sabem que o relacionamento existe e até mesmo ser alguém muito íntimo.

Por certo, essa fragilidade, esse lapso em sua memória, deverá trazer-lhes dor, muitas vezes de forma profunda. Poderá acarretar-lhes sofrimento a si mesmos. Começam a perceber o que lhes ocorre e não tem alternativas para reaver as condições mentais saudáveis de antes. Apresenta-se a necessidade de aprender a conviver com as circunstâncias, da melhor forma que lhes for possível.

É importante que as pessoas a conviverem com este nosso personagem procurem entender o que lhes ocorre e, mais ainda, compreender a melhor forma de atuarem nesse contexto.

Podemos identificar que alguns sentem “pena”, cuidam como se fossem “coitados”. Não poderia ser assim, pois estas pessoas que começam a demonstrar alguma dificuldade e dependência ainda têm em si alguma capacidade de percepção do que lhes ocorre, como também do comportamento daqueles com os quais convive. Ninguém gosta de ser observado como incapaz, ainda que o seja – total ou parcialmente.

Creio que todos nós, ainda que em pequena escala, gostamos de demonstrar alguma capacidade – seja mental, intelectual ou física. Quanto mais intensificamos o nosso olhar de “pena”, de superioridade – não reconhecendo uma luz de entendimento e consciência nesse Ser –, menos chances concedemos ao nosso parente ou amigo para estender por mais tempo sua capacidade de expressão, controle de emoção, percepção da vida e, mais do que isso, prazer em estar vivo e com condições de realização, comunicação sadia.

O afeto, o carinho por nossos companheiros de jornada, se expressa pela compreensão, pelo respeito, pelo entendimento fraterno do que possa estar a ocorrer com ele ou ela. Manter um olhar afetuoso e oferecer uma “mão” amiga, sem imposição, sem críticas, sem condenações ou impropriedades.

Voltando a uma observação no início dessas reflexões:

“– coitado, que pena, está tendo cada vez mais dificuldades para se expressar, para andar, para compreender o que lhe acontece.”

Na medida em que ainda conseguem identificar suas fragilidades, ainda que incipientes, sofrem dentro de si por saberem estar iniciando um processo complicado e difícil. Por vezes ainda podem identificar como nós nos comportamos diante deles, seja pelo olhar, por comentários subjacentes. Um certo pesar por serem catalogados como incapazes, depreciação, quando ainda se sentem em condições de realizarem várias tarefas – intelectuais ou não.

Pensamos que nossos parentes ou amigos nesse estágio da vida não percebem nossos comentários ou atitudes. É um engano. Se não entendem as palavras, alcançam, por certo, nossas atitudes. Estas deverão ser de expressão de amor, compreensão, sem afetação.

É uma realidade indiscutível e deverá ser compreendida como natural.

Se nós sentimos alguma dor pelo amigo ou parente, diante do processo que se apresenta à nossa frente, por certo aquele que passa pelo envelhecimento e eventual perda da capacidade intelectual ou de atividade motora também sofre ao perceber o aparecimento e evolução de suas limitações.

No meu modo de ver a questão, a dor daquele que está a identificar suas dificuldades surgirem é mais intensa e sofrida – física e emocionalmente. Não tem retorno, não há solução ainda disponível pela Medicina. E o observar o olhar dos que venham a acompanhar esses momentos com semblante de pena, amargura, só poderá intensificar esses sentimentos e, quem sabe, vindo a prejudicar ainda mais o processo em andamento.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *